Talvez, tal como José, Gerd e Oscar, que nos falam do seu “grande salto” nesta edição, tenha sonhado um dia em deixar a cidade para viver no campo?
Será este desejo de vida rural, que parece estar a crescer a nível individual, um sinal de uma grande mudança coletiva que está para vir? A crise da COVID alimentou a nossa imaginação rural, tanto que por vezes lemos aqui e ali sobre um possível “êxodo urbano” presente e futuro… mas para Portugal, há poucos números e estudos disponíveis para quantificar e analisar este fenómeno: quantas pessoas deixaram Lisboa e Porto nos últimos 2 anos para se mudarem para cidades de média dimensão, aldeias ou zonas rurais? E serão aqueles que o fizeram essencialmente famílias burguesas, que compraram montes no Alentejo para inventar uma ruralidade sexy, crianças felizes a subir às árvores, tempo para meditar e fazer yoga, e uma start-up bem-sucedida em teletrabalho? Os nossos encontros com Alex, Domingas, Hugo e Uma mostram-nos que, para alguns, estas escolhas são sobretudo motivadas pela necessidade económica – a cidade expulsou os violentamente – mas também motivadas por um desejo profundo de construir as suas vidas com base noutros valores: consumir e trabalhar menos, ganhar autonomia, encontrar tempo livre e desenvolver relações sociais mais ricas.
No entanto, a realidade do mundo rural português impõe muitos limites e obstáculos entre estes desejos e a mudança efetiva: as habitações disponíveis são decrépitas, mal isoladas e inadequadas às expectativas dos habitantes urbanos, as aldeias carecem de oportunidades económicas, e a adaptação dos estilos de vida e métodos de trabalho exige mudanças profundas, para não falar do isolamento geográfico e social que ameaça os recém-chegados. No entanto, em todo o país, muitas aldeias e concelhos criaram incentivos para reter a sua população e atrair novos habitantes, procurando trazer um novo sopro de vida para o interior.
Viver no interior hoje em dia requer profundas adaptações e invenções: não se trata de aplicar os estilos de vida urbanos dos quais fugimos, nem de esperar encontrar um modo de vida “tradicional” que nunca existiu, exceto na propaganda salazarista. Precisamos de hibridizar, inventar um futuro possível e habitável e criar alternativas que combinem a ligação ao mundo, a sobriedade e a equidade. É difícil. É entusiasmante. Foi por isso que convidámos 3 artistas a juntaremse a esta edição, porque sem arte, não vamos conseguir. A exploração destas novas formas de vida emergentes, em construção, desejáveis, é o tema deste primeiro número, e de todos os que se seguem.